segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A Língua Portuguesa no Livro Didático do PNLD 2019: da verdade ao folclore



                Na antiguidade a Língua era ensinada como uma arte que se cultivada era capaz de conduzir o aluno à sabedoria. Era prioritária e de alto valor educativo, de cunho objetivo e realista, sabendo-se que dela adviria um adulto pleno capaz de amar o conhecimento e exercer suas habilidades intelectuais com maturidade, retidão e verdade.

Enquanto arte, a linguagem era estudada contemplando todas as matérias e funções, tais sejam: fonética, ortografia e gramática.





Na antiguidade os alunos iniciantes em Filosofia aprendiam a Gramática, a Lógica e a Retórica. A Gramática, porque constitui a normatização de uma língua, é a ciência das letras e trata especificamente das palavras, das letras, seus caracteres e sons, a categorização das palavras, o substantivo, pronome, adjetivo, verbo, advérbio e etc. A Lógica, porque é por meio dela que se compreende a natureza e os conceitos das coisas. Não é à toa que os alunos modernos não sabem a diferença entre conceito e característica. E a Retórica, porque provia o aluno de capacidade para o desenvolvimento da argumentação. Estas eram as bases da linguagem na antiguidade. Hugo de São Victor definia esses três eixos da linguagem da seguinte forma: a gramática como a arte de falar sem vícios, a dialética como a arte de distinguir o verdadeiro do falso, e a retórica como a capacidade de falar com persuasão aquilo que é verdadeiro e idôneo.

Ensinava-se a linguagem segundo a metafísica, como um mecanismo para se compreender a realidade, mostrar a coisa tal como ela era, e como tal coisa era conhecida e comunicada. Entendia-se a importância da linguagem pelo papel relevante que ela desempenha no conhecimento e no pensamento.  

Então, se as palavras manifestam o que pensamos, como afirmava Aristóteles, para a boa utilização da linguagem e expressão correta do pensamento era necessário saber ler; compreender as propriedades das palavras e conceituá-las adequadamente; organizar as ideias com racionalidade e lógica; desenvolver habilidades de comunicação de modo que o estudante adquira a capacidade de pensar por si mesmo. 

No entanto, desde que se prometeu um admirável mundo novo às crianças, e que as tornaram cobaias de uma possível transformação social, decorreram-se consequências diversas, entre elas: um vácuo no ensino da língua e devidas superficialidades.

Depois que a escola atribuiu para si objetivos de mera socialização, pertencimento e objeto para promover a construção de identidades, a língua não serve para nada, além de simplesmente aglomerar os indivíduos em massas coletivas, unificá-los em torno de uma linguagem especificamente ideológica, e adestrá-los para se criar um exército de revolucionários politicamente corretos.

Portanto, para a formação de uma sociedade revolucionária ao invés de se aprender uma língua normativa, cria-se verborragias de hordas tribais, que não dependam de regra alguma, e se existirem, tais regras devem ser mutatis mutandis, sem que jamais absorva a linguagem “opressora” de algum grupo social que se proponha superior ou mesmo absoluta. 

Você verá a seguir como a Língua Portuguesa perdeu a sua essência no livro didático, ferramenta básica para o trabalho pedagógico, e na escola, lugar que, a rigor, deveria resguardá-la e protegê-la dos descaminhos políticos, sob pena de perdermos os laços que nos une ao passado, e de nos tornarmos meros receptores de culturas incertas e voláteis.

1)      A gíria no livro didático de Língua Portuguesa como forma de expressão enfática e característica da diversidade de linguagem. 





Figura 1 Coleção Gosto de saber 4º Ano Língua Portuguesa, p. 145

Como se verifica na figura 1, o livro da Coleção - Gosto de saber, 4º Ano da Editora Terra Sul,- selecionado no PNLD 2018, dedica uma unidade completa à gíria incluindo esta entre as variantes linguísticas. Ocorre que a gíria é uma expressão de jargão aquém da formalidade. Não há razão de incluí-la no livro didático, uma vez que não tem valor algum para a formação acadêmica. Trata-se de uma ação interculturalista para se contemplar todas as facetas dos grupos, as que existem e as que poderão ser criadas, como se percebeu na mais recente avaliação do ENEM onde os alunos tiveram que responder a uma questão sobre o jargão dos gays, como se fosse esta uma atividade relevante e como se todos os alunos convivessem com as práticas e atividades destes grupos.

Como se não bastasse as gírias, há ainda as reflexões sobre produção de sentidos. Na fase em que as crianças precisam compreender conceitos e padrões mais básicos; expressar com clareza e correção; grafar corretamente, sem omissões, acréscimos, troca de letras, as palavras da Língua Portuguesa; redigir observando as normas convencionais correspondentes, elas perdem energia capturando sentidos, gírias e trivialidades da vida comum que certamente não são relevantes para a formação acadêmica e nem para o desenvolvimento cognitivo e intelectual. 




Figura 2 Coleção Gosto de Saber 4º Ano Língua Portuguesa, p. 156

Na figura 2, ainda referente à Coleção Gosto de saber do 4º Ano da Editora Terra Sul, selecionada no PNLD 2018, na questão em análise, espera-se que o aluno reconheça a função da pontuação, mas o destaque é para os aspectos linguístico-expressivos e para a aplicação da coerência em textos repletos de erros, denominados “variantes dialetais”. 

A Língua Portuguesa ao longo de todo o livro é tratada mais como uma questão folclórica que uma disciplina onde os alunos necessitem dominar as competências mediante o conhecimento das convenções.  

A Gramática torna-se apenas um plano de fundo sem o devido destaque e é tratada nos novos livros didáticos como uma prática criativa onde o aluno é o protagonista do próprio aprender. Ocorre que é impossível ser protagonista de algo que não se tem o domínio. Vê-se apenas uma subestimação da capacidade dos alunos dominarem a gramática que constitui a normatização da própria língua. 




Figura 3 Coleção Gosto de Saber - Língua Portuguesa , 4º Ano, p. 145

Observa-se que no suplemento didático do professor orienta-se que não se deve usar a gíria nos trabalhos formais, ou seja, se a gíria não tem importância, não há necessidade do livro didático manter o foco nessa prática.

Vê-se ainda que os estudantes são instigados a levantar hipóteses sem sequer saber os princípios fundamentais que regem a língua, e são obrigados a refletirem sobre aspectos sem sequer conhecer a estrutura de uma frase.

O que se percebe nos livros didáticos de Língua Portuguesa são textos que propõem análises sob a perspectiva da contextualização, das inferências, do intertexto e outras inovações, porém nenhuma destas práticas pedagógicas, nem no âmbito da língua e nem de qualquer outra área, têm apresentado qualquer sucesso, pois os exames têm demonstrado que os alunos mal leem, menos ainda compreendem e inferem.

Eis a razão porque os livros contemplam em sua totalidade as variantes sociais, pois estas, normalmente, todos têm domínio, uma vez que constitui sua linguagem usual. O desafio consiste em dominar as variantes cultas, pois são elas que se baseiam nas raízes da língua, e apreendê-las constitui uma promoção ao desenvolvimento cognitivo do aluno.



Percebe-se que a incorporação da abordagem sociolinguística alcançou seu apogeu encontrando em seu caminho a Base Nacional Comum Curricular que consagra os saberes linguísticos como indispensáveis para a formação da cidadania do aluno.

Nesse conjunto, as práticas sociais interativas, a participação social e a remodelagem da cultura, são eixos para a composição dos estudos linguísticos aplicados aos alunos na primeira fase do Ensino Fundamental. De modo geral, há um desvio de finalidade no objetivo do livro didático de Língua Portuguesa que a rigor, poderia ser uma ferramenta para ajudar o aluno a desenvolver o aprendizado correto da língua.

Afirma-se que o conjunto do trabalho ajudará a criança a ler autônoma e criticamente, no entanto, o que sabemos mediante os exames é que chegam ao Fundamental sem saber ler e terminam o Ensino Médio sem compreender um texto.

O Livro didático de Língua Portuguesa apresenta desvio de finalidade, e sua ênfase se detém: na expressão de identidades culturais; na língua como fenômeno cultural, histórico, social, heterogêneo; e o texto como canal de manifestação dos valores ideológicos.

Conclui-se que os livros de Língua Portuguesa utilizam a língua para fins subversivos, políticos e ideológicos em atendimento à visão de uma corrente política que afirma que a língua é instrumento de opressão e domínio, superioridade, controle, distinção de classes e meio para se assentar na classe dos privilegiados.

Ora, não é função do aprendizado da língua portuguesa ser utilizada como arma ou meio de exclusão social ou para estigmatizar este ou aquele aluno, mas não é por esse motivo que se deva desmerecer o valor que ela tem para o aprimoramento e desenvolvimento cognitivo e intelectual do aluno, uma vez que é esta a função da escola, doutro modo, não haveria necessidade da sua existência. Se não há na escola nada a aprender para além do trivial, a escola não tem razão de ser e existir, portanto, toda a sociedade está sendo ludibriada e seus impostos estão sendo mal aplicados.

Silvailde de Souza Martins Rocha, é pedagoga em Teresina (PI), mestre em políticas públicas e gestão da educação básica (UnB). É presidente Instituto de Estudos Independentes (INTESI), que se dedica à pesquisa sobre educação.  

3 comentários:

A quem interessa o desperdício público de livros didáticos?

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